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Gollum: As Reflexões Sobre Dualidade e Sombra Humana em ‘O Senhor dos Anéis’

O Fascínio do Monstro Familiar

Nas vastas paisagens da Terra-média, talhadas pela pena magistral de Tolkien, emerge uma criatura que é mais do que um simples antagonista ou uma nota de rodapé na grande saga: Gollum. Figura de fascínio indelével, ele nos captura e nos intriga, não apenas pela sua aparência grotesca ou seus atos vis, mas pelo espelho perturbador que oferece à nossa própria condição humana. Gollum, em sua essência fraturada, personifica a eterna dualidade que nos habita, os embates silenciosos travados na arena da alma. Embora sua trajetória pareça um extremo de degradação, há ecos de suas lutas em nós – ecos que ressoam profundos e nos convidam à reflexão. Analisar Gollum é, inevitavelmente, confrontar nossas próprias fragilidades, meditar sobre a natureza sedutora da tentação, o peso corrosivo do poder e a possibilidade, ainda que tênue, da redenção.

As Fissuras da Alma: De Sméagol a Gollum

Antes da sombra, havia Sméagol. Um hobbit de curiosidade talvez excessiva, cuja existência foi irrevogavelmente alterada pelo encontro fatídico com o Um Anel. Este artefato, impregnado de poder e malícia, não criou a maldade do zero; antes, agiu como um catalisador impiedoso, exacerbando as fraquezas latentes, nutrindo a cobiça adormecida. O resultado? Uma psique cindida, um ser em guerra consigo mesmo. De um lado, Sméagol, o fiapo remanescente de sua identidade original, agarrando-se a lampejos de inocência. Do outro, Gollum, a persona devorada pelo desejo possessivo, a voz sibilante da obsessão.

Essa metamorfose não foi um raio em céu azul, mas um lento e insidioso processo de corrosão. Uma demonstração sombria de como forças externas, paixões avassaladoras, podem moldar, distorcer e, por fim, desfigurar nossa essência mais íntima. A dualidade Sméagol/Gollum ergue-se como símbolo universal da batalha interna: a luta entre nossas aspirações mais nobres e os impulsos mais sombrios e primitivos. Gollum é a encarnação do vício, o retrato extremo de como a busca incessante por aquilo que precioso – seja poder, posse ou prazer – pode nos desumanizar. A dissonância cognitiva, o desconforto que sentimos quando nossos atos traem nossos valores, encontra em Gollum sua expressão mais visceral e trágica.

Ecos de Gollum em Nós: Espelhos da Condição Humana

A tragédia de Gollum não reside apenas em sua singularidade monstruosa, mas na universalidade de suas motivações. Seus traços mais marcantes encontram paralelos desconcertantes em comportamentos e sentimentos profundamente humanos.

Gollum e o Anel

A Sede Insaciável: A Obsessão Como Vórtice

O Um Anel. Para Gollum, não um objeto, mas o epicentro de sua existência, um vórtex que o suga e consome. Essa devoção febril, essa sede que jamais se aplaca, reverbera em nós sob a forma de vícios e compulsões. Seja a dependência química, a busca incessante por status, a validação vazia das redes sociais ou mesmo relações tóxicas que nos aprisionam. A obsessão, como a que vitimou Gollum, tem o poder de nos cegar para as consequências, de nos fazer negligenciar o que verdadeiramente importa, conduzindo-nos por caminhos de autodestruição. Quantos “preciosos” modernos nos desviam de nossa própria humanidade?

O Campo de Batalha Interior: O Conflito Incessante

A querela interna, o diálogo atormentado entre Gollum e Sméagol, é talvez o aspecto mais reconhecível de sua condição. Quem não vivenciou o embate entre a razão e o desejo, entre o dever e o impulso, diante de dilemas morais ou decisões cruciais? Essa guerra íntima manifesta-se como ansiedade, como a paralisia da indecisão, como um mal-estar persistente que corrói a paz de espírito. A dificuldade em alinhar pensamento, sentimento e ação é uma constante humana que Gollum eleva à sua potência máxima.

A Ilha da Alma: Isolamento e Desconfiança

Gollum habita uma solidão profunda, um isolamento alimentado pela posse ciumenta do Anel e pela desconfiança generalizada. Sua existência é subterrânea, literal e metaforicamente. Quantos de nós, por medo, trauma ou pela própria dificuldade em confiar, não erguemos muros que nos isolam? A solidão, mesmo em meio à multidão, é uma experiência dolorosamente comum. Ela pode ser um caldo de cultura para a tristeza, a baixa autoestima e um ciclo vicioso de autoafastamento, onde o medo de se conectar perpetua a própria solidão que se teme.

O Cotidiano Sob a Lente de Gollum: Exemplos Tangíveis

As sombras de Gollum projetam-se para além da fantasia, encontrando reflexos em nosso dia a dia:

  • A Obsessão no Escritório: O profissional que não desconecta, acorrentado ao trabalho como Gollum ao Anel, sacrificando saúde, família e lazer em nome de uma produtividade incessante. O “precioso” aqui pode ser o sucesso, o reconhecimento, mas o custo é, muitas vezes, o esgotamento (burnout) e a perda do essencial.
  • O Remorso Silencioso: A luta interna após um conflito, o orgulho batalhando contra o desejo de reconciliação, de pedir desculpas. É a voz de Sméagol tentando emergir, enquanto Gollum insiste na autopreservação hostil. Essa incapacidade de admitir o erro e buscar o perdão envenena relações e impede o crescimento.
  • Solidão Conectada: Sentir-se só mesmo rodeado de pessoas, ou perdido na vastidão das conexões virtuais que prometem proximidade mas entregam, por vezes, apenas um eco da nossa própria solidão. A desconfiança ou o medo do julgamento, tal como em Gollum, nos mantém à margem, observando a vida à distância.

Um Olhar Psicológico: As Camadas da Psique Fragmentada

Sob uma ótica psicológica, a condição de Gollum avizinha-se de quadros complexos. Poderíamos especular sobre um transtorno dissociativo, onde a personalidade se fragmenta como mecanismo de defesa extremo diante de um trauma avassalador – a corrupção pelo Anel. Este atuou como gatilho, inflamando vulnerabilidades preexistentes e forjando a identidade sombria de “Gollum” para conter (e expressar) os aspectos reprimidos e temidos de Sméagol. A batalha incessante entre os dois pode ser lida à luz da psicologia Junguiana: o confronto perene entre o Ego (a consciência de Sméagol) e a Sombra (tudo aquilo que foi negado e projetado em Gollum).

Conclusão: Acolhendo Nossas Próprias Sombras

Assim, Gollum transcende as páginas e a tela. Ele se torna um espelho incômodo, por vezes estilhaçado, onde relances de nossas próprias batalhas interiores são revelados. Perscrutar sua jornada não é apenas decifrar um personagem complexo de “O Senhor dos Anéis”, mas ousar um mergulho nas águas frequentemente turvas da psique humana. Encontrar ecos de Gollum em nós não deveria ser motivo de vergonha, mas um convite à autoconsciência e à empatia – por ele e, crucialmente, por nós mesmos.

Reconhecer que todos carregamos nossas “sombras”, nossos “Gollums” internos, com suas obsessões e conflitos, é o primeiro passo libertador. É o início da jornada para compreender, integrar e, talvez, transformar essas partes de nós. Gollum nos lembra da fragilidade da condição humana, da sedução constante do “precioso”, mas também, enigmaticamente, da persistência de uma centelha – a possibilidade, mesmo que remota, de retorno à essência, de redenção. Ele nos desafia à introspecção, à compaixão e à corajosa aceitação de que as guerras mais significativas são travadas no silêncio do nosso próprio coração. E é nesse reconhecimento que reside o potencial para a cura.

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Writer & Blogger

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